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Roberta di Ricco Loria

Racismo em escolas expõe falhas pedagógicas

Há casos de segregação de bolsistas em colégios particulares, apesar de benefício fiscal

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Roberta di Ricco Loria

Advogada, atua no combate ao racismo na educação

Notícias de racismo em escolas particulares vêm se tornando frequentes.

Na semana passada, tornou-se pública ofensa racista contra uma adolescente de 14 anos, filha da atriz Samara Felippo, no colégio Vera Cruz, na capital paulista. Na unidade de Valinhos (SP) do Colégio Visconde de Porto Seguro, em 2022, um menino sofreu ataques racistas em um grupo de WhatsApp. O Porto Seguro também sofreu ação judicial que aponta discriminação na concessão de bolsas de estudos em São Paulo. O colégio é uma instituição filantrópica detentora do Cebas (Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social). Recebe imunidade tributária e transferências de recursos governamentais. A contrapartida é a concessão das bolsas.

A imunidade é forma indireta de investimento público. O poder público deixa de receber tributos em benefício da escola. O Cebas Educação poderia contribuir para a educação antirracista e a inclusão no ensino privado. O que vemos, porém, são situações de segregação, apesar de a lei vedar diferenças de tratamento.

Estudantes de escola privada em São Paulo - Keiny Andrade - 2.set.2021/Folhapress

No Porto Seguro, segundo ação civil pública proposta por Educafro, Anced Brasil e Ponteduca, as bolsas são oferecidas em campus exclusivo a bolsistas que cursam grade curricular diversa. Uniformes são diferentes, festas juninas são realizadas em horários diferentes, a diretoria é outra. Funciona quase como uma escola à parte, mas de qualidade inferior.

Apesar da proibição legal, a prática da segregação ainda acontece em muitas escolas particulares paulistanas. No Colégio Pio XII, há algum tempo, alunos se referiam às salas em que estudavam bolsistas como "escola dos pobres" —hoje extintas. No Colégio Santo Américo havia a "sala dos bolsistas" e, durante o recreio, as crianças ficavam separadas; hoje o cumprimento da cota de filantropia se dá em unidade separada. No Colégio São Luís são oferecidas bolsas no ensino médio no período noturno; pagantes não convivem com os bolsistas.

Em 2003, a lei 10.639 tornou obrigatório o ensino de história, cultura africana e afro-brasileira na educação pública e privada, mas não gerou nas escolas privadas o senso de urgência da mudança. Na maioria das escolas particulares de São Paulo, questões sobre educação antirracista ainda não se fazem genuinamente presentes, mesmo quando debates sobre racismo passaram a ter protagonismo inédito e muitos projetos antirracistas começaram a ser pensados.

Casos como o do Vera Cruz não são exclusividade de uma escola, nem se resume a um episódio. A gravidade do fato e o relato da mãe da vítima levam a crer que as relações da adolescente com os colegas já eram regadas por racismo e situações de microagressões que escalaram. Se as mudanças exigidas pela lei 10.639/03 tivessem sido implementadas há mais de 20 anos, certamente as escolas estariam mais preparadas para evitar e remediar a violência racial. Casos como o de segregação no Porto Seguro seriam mais escassos e mais chocantes ao senso comum.

O atraso nas escolas em respeitar a lei e a recorrência de episódios de racismo, entretanto, não podem levar a um pessimismo paralisante. Projetos antirracistas iniciados em 2020 não dariam conta de prevenir todas as situações de racismo. Devemos dar prioridade ao trato pedagógico da questão racial brasileira e fiscalizar o uso de incentivos fiscais e os recursos humanos. A educação inclusiva de qualidade e o acolhimento de alunos num mesmo ambiente escolar continuam a ser a única opção defensável do ponto de vista moral, jurídico e pedagógico.

O que se pede na ação civil pública contra o Porto Seguro —por exemplo, a mesma carga horária de atividades para todos os alunos— é o básico, pois as bolsas são concedidas com dinheiro público. Deveria haver critérios relacionados à educação antidiscriminatória não só para concessão e renovação do Cebas, como também para as demais escolas particulares.

A educação é direito público dos cidadãos, mesmo quando prestada por ente privado. Sua qualidade e obediência à lei devem ser garantidas e fiscalizadas pelo Estado.

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